Onchain, o novo online
Explicar o que é blockchain, ou até mesmo o que é web3 não é uma tarefa simples. É como tentar explicar o que é a internet para alguém que nunca esteve conectado. Como você abordaria essa explicação? Como você explicaria para além do óbvio, quais são as profundas implicações dessa tecnologia para o mundo?
Acho que muitos já viram esse vídeo, mas achei válido registrar aqui que apesar do caráter cômico ele é uma ótima ilustração de como tecnologias no começo podem não parecer grande coisa.
Nessa newsletter trago minha visão sobre a direção que a internet evoluirá, o porque eu acredito que o mundo migrará para um formato onchain e prover alguns exemplos de aplicações que podem impactar o mundo profundamente.
Uma breve história da internet
A base para a internet como conhecemos hoje veio com a popularização dos computadores pessoais e dos primeiros sistemas operacionais (como o Macintosh da Apple e o MS-DOS, base do que viria a ser o Windows). Os computadores pessoais serviram como a primeira interface pela qual as pessoas se conectaram à internet, ainda que de forma intermitente inicialmente.
A primeira onda de adoção da rede, veio através da internet discada. Nessa época a maior parte dos serviços disponíveis ainda era incipiente, o HTML5 só veio existir décadas depois e animações requeriam o extinto flash. De fato, o que era possível se fazer era muito limitado.
Hoje, chamamos essa era da internet de web1, ou read era. A maior parte das pessoas usava a internet para checar informações ou utilizar serviços de e-mail. Além disso, o uso da internet acontecia de maneira intermitente, muito longe do mundo atual, conectado 24/7 e de maneira quase ininterrupta.
Por volta do anos 2000, quando a banda larga começava a ficar disponível globalmente (No Brasil a primeira operação comercial de internet banda larga se iniciou em Dezembro de 1997), uma pesquisa revelou que 57% dos usuários de internet discada nos Estados Unidos não viam necessidade de melhorar sua conexão para a banda larga. Não é de se surpreender, já que a maior parte dos serviços disponíveis não exigia essa maior disponibilidade de banda.
Alguns anos depois, quando a internet banda larga se tornou mais disponível (em 2004, 63% dos adultos nos EUA tinham acesso à banda larga. Com os dados disponíveis, estimo que o Brasil atingiu patamares parecidos por volta de 2015) e os computadores pessoais se tornaram melhores, serviços como Facebook e Youtube começaram a surgir.
Esses serviços têm algo em comum. Eles saem da lógica da “read era” e passam a permitir que usuários comuns também possam produzir e disponibilizar conteúdos em plataformas de grande alcance, sem a necessidade de saber construir websites. Esses são os primórdios da implementação da web2, ou da “read, write era”.
Como discutimos na minha primeira newsletter, esse movimento deu origem às redes corporativas, que ajudaram na massificação da internet, mas também causaram outro fenômeno que é a contínua extração de valor das redes e a perda do controle dos usuários e criadores de conteúdos sobre o funcionamento das plataformas e sobre seus dados.
A próxima evolução de infraestrutura veio em 2007, com o lançamento do iphone e a subsequente popularização dos smartphones e da internet móvel. Essas inovações permitiram a adoção massiva da internet, fazendo com que a tecnologia quebrasse barreiras geracionais e chegasse às mãos dos nossos avós.
O mobile trouxe algo além de uma interface nova para os usuários, mas também trouxe consigo novos canais de distribuição. As lojas de aplicativos são hoje um grande canal de distribuição para aplicações como o Instagram, WhatsApp, jogos mobile, Uber, bancos digitais, wallets e mais. E algumas dessas plataformas, por sua vez, também se tornaram formas de distribuir produtos.
Sem dúvida, esse movimento trouxe a web2 para a maturidade, trouxe negócios de tamanhos variados para o online e também habilitou uma evolução em diversas indústrias, como telecomunicações e o mercado financeiro.
Ok, esse é nosso estado atual. Qual seria o próximo passo?
Read, write, own - A nova era da internet
Acredito que o próximo ciclo da internet vai ser marcado pela blockchain, ou pela migração para o onchain de diversos serviços. Essa evolução vem como resposta a dois dos maiores problemas no modelo atual da internet: Posse e Confiança.
Problema com a posse:
Posse de ativos inerentemente digitais: Mesmo com leis como LGPD em vigor, os usuários de redes sociais não são verdadeiramente donos dos seus dados, migrar de uma rede para a outra é começar do zero. Imagine que se ao mudar de casa, você não pudesse levar seus móveis consigo? Atualmente audiência e conteúdo são ativos tão ou até mais importantes que bens físicos, e não ter o direito de fazer com eles o que bem entendemos se torna uma problema cada vez mais relevante.
Posse de ativos/serviços mistos (real/digital): Tickets de shows e hospedagens em hotéis são um bom exemplo. Atualmente existe uma representação de posse deles no mundo digital, porém o ativo/serviço acontece no mudo real. O problema aqui é que essa representação de posse é limitada e muitas vezes não permite a existência de um mercado secundário. Outro exemplo seriam os ativos financeiros, como títulos públicos e dinheiro, que possuem representações digitais, porém, a capacidade de transacioná-los não acontece na mesma velocidade que a internet, especialmente em contextos transfronteiriços. Se os dados se movimentam de maneira quase instantânea, porque ativos financeiros também não?
Posse de ativos inteiramente reais: Hoje compramos e vendemos tudo pela internet. Por exemplo, automóveis e imóveis que apesar de serem ativos transacionados pela rede a sua representação de posse não é. Ainda precisamos do mundo analógico para a transferência de posse. Mas eu te pergunto, se o ativo está sendo vendido/comprado online, porque não podemos também transferir sua posse na mesma velocidade que as coisas acontecem na internet?
Já o problema com confiança se apresenta de diversas maneiras, porém todos acabam voltando à identidade e intermediação. Com a quantidade crescente de informação disponível, pode ser complexo identificar quais delas são confiáveis. Além disso, até hoje, realizar trocas na internet apresenta problemas com confiança entre as partes.
A maneira que encontramos para solucionar esses problemas hoje é colocando um intermediário no meio, seja supervisionando as transações, seja administrando a rede ou garantindo identidade (e.g. KYC), o que acaba aumentando custos e gerando novos problemas relacionados à centralização (falo um pouco mais sobre isso aqui).
De fato, esses problemas são complexos, mas com o surgimento das blockchains generalistas, como o Ethereum, um novo modelo de redes se torna possível. Agora conseguimos resolver o problema da confiança e coordenação em redes descentralizadas, reduzindo a necessidade de intermediários em operações.
Nesse contexto, o software passa a intermediar a relação entre pessoas e o código se torna a lei.
O surgimento do Ethereum trouxe consigo a capacidade de se executar operações complexas na blockchain através dos contratos inteligentes. Esses contratos garantem que transações vão ser executadas de maneira transparente e segura, sem a necessidade de intermediários. Nesse contexto, o software passa a intermediar a relação entre pessoas e o código se torna a lei.
Para além de confiança, essas blockchains trazem consigo, uma nova forma de representar posse; os Tokens.
Tokens são primitivos dentro das redes, ou seja, são os blocos com os quais construímos coisas mais complexas. Eles trazem consigo padronização para a representação de ativos. Por exemplo, na rede Ethereum temos padrões como o ERC-20, para tokens simples e fungíveis como o próprio ETH, já o padrão ERC-721 é usado para tokens não fungíveis como NFTs. Essa padronização cria um alto nível de “composabilidade”, que permite que conhecimento se agregue e a construção de novas soluções acelere. Para além disso, é possível que exista interoperabilidade entre diferentes aplicações, já que todos podem trabalhar com ativos registrados de maneira semelhante.
Talvez uma forma menos abstrata de se olhar para os tokens, mas que ainda assim consegue compreender o seu potencial é enxergá-los como uma representação de propriedade. Tokens podem representar ativos reais (RWA), moeda (stablecoins), identidade ou até mesmo endereços na internet ou contas em redes sociais. Em outras palavras, tokens são uma forma digital de representar propriedade. Possuir tokens é efetivamente possuir os ativos representados.
Por exemplo, se um usuário que tem sua identidade associada a um token, faz um post em uma rede social que roda em cima da blockchain, o conteúdo se torna automaticamente associado a aquele indivíduo, que além de garantir propriedade, garante que aquele conteúdo veio de uma pessoa real. Para além disso, as políticas de rede, em sua grande maioria, estariam escritas de maneira transparente e imutável em contratos inteligentes. Isso muda a lógica pela qual as redes sociais operam. Mas indo além, altera a forma que redes no geral funcionam. Sem a presença de intermediários o valor da rede é direcionado para a sua manutenção e em grande medida para os seus usuários, aqueles que de fato criam o valor da mesma.
Esse movimento representa a transição do ler e escrever “read and write” para ler, escrever e possuir, “read, write and own”.
Assim como a internet até aqui mudou diversos aspectos das nossas vidas, como a forma que compramos, construímos negócios ou até mesmo como interagimos com o mercado financeiro, adicionar blockchain à mistura, tem o potencial de levar isso a outros patamares.
Vamos ver alguns exemplos.
Stablecoins: Dinheiro, só que melhor!
Existem diversos tipos de stablecoins, mas todas elas tentam manter a paridade com um tipo de ativo. O tipo mais usado, e o que vamos abordar aqui (para aqueles que querem uma discussão mais aprofundada sobre o tema, escrevi sobre isso aqui) são as stablecoins pareadas e colateralizadas com o papel moeda (fiat) ou equivalentes de papel moeda. De maneira simples, uma unidade de stablecoin de dólar tem o valor e pode ser convertida a qualquer momento por um dólar.
Esses tokens são hoje o caso de uso mais proeminente no mundo de crypto, com o market cap girando em torno dos USD 150 bilhões. Essa aplicação está crescendo tanto que os emissores de stablecoins juntos ocupam a décima sexta posição de maiores detentores de títulos do tesouro americano.
Para além disso, stablecoins já transacionam volumes maiores que players como Mastercard e Paypal e estão em níveis semelhantes à Visa. Somente no último mês de maio, essa categoria de stablecoins transacionaram valores superiores a USD 3 trillhões.
Stablecoins pareadas e colateralizadas por dólar, como USDT e USDC, representam um grande salto de tecnologia. Eles usam a blockchain para criar uma forma de dinheiro segura (o colateral desses tokens é em grande parte títulos do tesouro americano) que é programável e consegue ser transacionada 24/7 sem a necessidade de intermediários. Isso significa que qualquer um com algumas linhas de código consegue construir uma aplicação para pagar e receber dinheiro, bem como realizar a custódia desses ativos sem grandes complicações. E talvez, o caso de uso mais imediato, transferências internacionais, substituindo o SWIFT.
STABLECOINS SÃO DINHEIRO PROGRAMÁVEL, TRANSPARENTE E QUE SE MOVIMENTA NA VELOCIDADE DA INTERNET.
Vai se tornar mais fácil construir operações online que permitem compra e venda de bens de maneira a tornar as barreiras entre nações cada vez menores. Além disso, operar em comunidade e construir uma tesouraria comum, transparente, eficiente e sem a necessidade de um intermediário está a algumas linhas de código de distância.
Não é à toa que empresas como Visa, Paypal, Mastercard e Stripe já estão lançando seus próprios projetos que fazem uso dessa tecnologia.
Identidade e posse no mundo online
Atualmente existem diversos projetos que se dedicam a resolver a questão de como verificar identidade de maneira digital. Talvez o mais proeminente deles seja o Worldcoin que utiliza dados biométricos para criar um identificador único onchain para indivíduos, chamado de World ID. Ele funciona como uma identidade universal na blockchain que, por exemplo, consegue te dar acesso a serviços (pense no Login com Google) e também pode ser utilizado para assinar conteúdos online e verificar a sua procedência. Atualmente existem mais de 5.5 milhões de World IDs verificados (eu particularmente faço parte dessa conta).
Outro protocolo interessante é o ENS (Ethereum Naming System). Esse protocolo é uma espécie de DNS dentro do ecossistema Ethereum. O DNS é um protocolo que permite acesso a serviços online via nomes amigáveis aos seres humanos como “www.google.com”, ao invés de um código IP nada amigável como “74.125. 239.35”. O ENS tem uma função similar que substitui a necessidade de se verificar um usuário através de uma chave pública hexadecimal, que se parece com isso 0xb794f5ea0ba39494ce839613fffba74279579268, por um nome amigável, como por exemplo seunome.eth. Esse endereço pode servir como uma URL para uma website ou até mesmo como o nome de uma pessoa numa rede social.
Existem também projetos de redes sociais completamente descentralizadas como a Farcaster, uma rede social na blockchain que levantou recentemente USD 150 milhões em uma rodada de Series A.
Tokenização
Tokenização é um tema em alta e um movimento que definitivamente veio para ficar! O que está acontecendo atualmente é o começo da migração da representação de posse para um modelo primariamente digital. Ativos dos mais variados, como recebíveis de cartão de crédito, infraestrutura logística, imóveis ou até mesmo créditos de carbono estão migrando para o mundo onchain.
Pare para pensar comigo por um momento. Se nossos ativos estão representados por tokens, a posse do token equivale à posse do ativo. Então, realizar transações de compra e venda, se torna uma atividade completamente onchain, tão fácil quanto trocar tokens. Poderemos fazer operações com ativos reais na mesma velocidade que mandamos mensagens pela internet ou fazemos um PIX. E o melhor, de forma segura, transparente e sem a necessidade de intermediários.
Um grande exemplo é o mercado de tokenização de títulos do governo americano que está se aproximando dos USD 2 bilhões. Mas para além disso, existem mercados em desenvolvimento em tokenização de commodities, do mercado imobiliário, tickets de eventos e até mesmo de recebíveis de cartão de crédito.
Crédito e ganhos onchain
Dentro do mundo de blockchain ainda existem modelos de crédito, tanto utilizando única e exclusivamente crypto como colateral e outras que se utilizam de ativos reais tokenizados. Por exemplo, existe um mercado em desenvolvimento de crédito privado, em grande parte colateralizado por ativos reais e com foco em PMEs. Essa é uma operação nativamente digital, onde tanto o colateral quanto o empréstimo estão na blockchain.
Esses protocolos unem investidores e tomadores de empréstimos, permitindo não só o financiamento de operações de empresas reais, mas também provendo a investidores no mundo todo acesso à investimento em empresas que de outra forma eles não teriam.
Para além disso, existem diversas formas de investimento através de protocolos que investidores “financiem” atividades como a validação de blocos ou sejam provedores de liquidez para operações variadas. Em uma pesquisa não exaustiva estimo que existem entre USD 100 a 110 bilhões em capital alocado nesses projetos, com retornos por ano que chegam a até 60%.
Pensamentos finais
Estamos vivendo o começo da transição para o onchain. Ainda pode ser difícil visualizar todas as implicações que esse novo modelo de construção de redes pode ter no mundo. Mas assim como a internet, que começou parecendo uma brincadeira, a blockchain vai impactar sua vida mais do que você imagina.
Seguem aqui alguns links que recomendo a leitura: